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Alqueva: “O agronegócio instalou-se, o pequeno agricultor morreu”. Após 20 anos, há defeitos e virtudes

Os ambientalistas que há duas décadas se uniam contra o Alqueva continuam hoje a apontar mais defeitos do que virtudes da barragem e destacam a agricultura intensiva como o pior dos males.

Quando se completam 20 anos sobre o início do enchimento daquele que é o maior lago artificial da Europa ocidental a Lusa falou com os que na altura começaram por ser contra a construção de um projeto tão grande e que depois tentaram que ele fosse mais pequeno. Nada conseguiram.

Das organizações que integravam o movimento ambientalista destacavam-se o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), Liga para a Proteção da Natureza (LPN), Quercus e o Centro de Estudos da Avifauna Ibérica (CEAI).

De fevereiro de 2002 a fevereiro de 2022, os ambientalistas ouvidos pela Lusa pouco mudaram no que ao essencial diz respeito. “Tínhamos e continuamos a ter receios, no regadio por exemplo”, afirma à Lusa José Paulo Martins, à época dirigente da Quercus e hoje na organização ambientalista Zero.

E acrescenta: “A pressão é imensa para o regadio. O agronegócio instalou-se, o pequeno agricultor morreu. Agora há grandes grupos, fundos financeiros. O território passou a ser um espaço de produção, como uma fábrica”. Para produzir, frisa, não o que país precisa mas o que for mais rentável, seja o olival, seja o amendoal.

José Paulo Martins admite que há água para a rega, mesmo com seca, mas avisa que está a aumentar a superfície, o que pode não ser bom.

Joaquim Pedro Ferreira, biólogo, que há 20 anos representava o CEAI, critica também a agricultura. Diz que a qualidade da água e o regadio são questões dramáticas e afirma-se chocado com o que chama passividade do poder local em relação à proliferação da agricultura intensiva.

Alqueva, diz, não levou ao Alentejo nem habitantes nem emprego, e a população local tem à sua volta um olival intensivo carregado de fitofármacos e degradação de solos, que prejudicam a saúde.

O ambientalista cita o INE para falar da perda de população. E José Paulo Martins também diz que Alqueva nem conseguiu fixar pessoas e inverter a tendência de desertificação.

Segundo os dados oficiais têm razão. Beja tinha em 2011 quase 36 mil pessoas (valor semelhante ao de 2001) e em 2021 tinha 33.401. Évora tinha 56.596 pessoas em 2011 (também semelhante ao valor de 2001) e em 2021 a população desceu para 53.591 pessoas. Perdeu essencialmente adultos até aos 64 anos.

Essa “fuga” das pessoas refere-a também João Joanaz de Melo, que se envolveu na luta por um outro Alqueva como líder do GEOTA. É que, diz à Lusa, “a maior parte das populações da zona circundante do Alqueva não beneficiou do projeto”.

Porque os projetos do Alqueva são “para enriquecer quem faz as obras e eventualmente algumas empresas”, já que se baseiam num modelo que depende da vontade de terceiros. E aumentar o regadio, avisa, tem de ser feito com muito mais cuidado do que tem sido até agora.

Alias, acrescenta Joanaz de Melo, não faz sentido destruir ecossistemas para ter sistemas agrícolas que não são rentáveis nem competitivos a nível europeu, desde logo pelo preço elevado da água. “Uma coisa é regadio complementar, como uma peça de empreendimento agrícola, para hortícolas ou frescos, o resto não faz sentido porque não há nem agua nem competitividade”.

Face às alterações climáticas, Joaquim Pedro Ferreira contrapõe com outros avisos e com o que lhe faz mais sentido. Em Alqueva investe-se num sistema que é ao contrário do que devia ser, sentencia.

“O sistema agrossilvopastoril foi substituído por um sistema feito para a agroindústria das grandes multinacionais” e neste momento “não há regras”, diz à Lusa, afirmando-se preocupado com a perda de biodiversidade, e concluindo: “O cenário que vejo é muito mau”.

Alqueva, segundo Joaquim Pedro Ferreira, não ganhou em paisagem (quem diz ao contrário “é porque não conheceu a paisagem anterior”), optou por um modelo agrícola que “não vai trazer nada de bom à região”, e há com tudo isso “uma despreocupação com as pessoas”.

E há ainda outro problema, invisível, alertam os ambientalistas: a qualidade da água.

Eugénio Sequeira, dirigente da LPN, diz que ao receber efluentes o rio Guadiana recebe sal. “Cada habitante (de cidades junto do rio) é responsável por 50 gramas de sal por ano no rio e isso leva depois à salinização dos solos”.

O dirigente não tem dúvidas de que se “estão a fazer asneiras” no Alqueva, de que “a longo prazo vai haver problemas”, e de que o aumento do regadio vai aumentar a degradação dos solos. E pergunta quem é que está a estudar a quantidade de sal que todos os dias é lançado no Guadiana através dos esgotos.

Deixa ainda à Lusa mais uma certeza: o Alqueva a longo prazo vai ser um elefante branco, e vai mesmo inquinar as águas subterrâneas e a falta de estudos sobre estas matérias “é de uma irresponsabilidade enorme”. Joaquim Pedro Ferreira e José Paulo Martins também dizem que a água tem demasiados nutrientes. O antigo dirigente da Quercus conta que em Espanha já houve problemas com o jacinto-de-água, uma planta aquática invasora, e acrescenta que nem o turismo salva o Alqueva, uma região com “cenários espetaculares” no vale do Guadiana antes do enchimento.

Alqueva proporcionou um espelho de água, como outros, mas o habitat de uma barragem não é o mesmo de um lago, não fixa vegetação, não tem uma orla de vida, diz.

É certo, acrescenta, que algumas espécies se fixaram, alguns corvos-marinhos, algumas outras aves, mas “a barragem é um aquário de peixes exóticos”, e não é um habitat muito rico.

Joaquim Pedro Ferreira também desvaloriza as aves oportunistas que aproveitaram a barragem, nada comparado com o desaparecimento de espécies em risco de extinção, do fim de espécies de peixes importantes, como o saramugo.

“Há sempre espécies que se aproveitam mas o resultado líquido de Alqueva em termos puramente ecológicos foi uma degradação. A biodiversidade perdeu, isso é inequívoco”, resume João Joanaz de Melo.

E resume mais, diz que a lógica de Alqueva foi e continua a ser megalómana, que lhe faltou discernimento, que é um mito dizer-se que vai desenvolver o Alentejo.

Todas as contas feitas, diz o ambientalista e professor, dão à barragem algumas virtudes e muitos impactos.

Alqueva, 20 anos depois, não é nas palavras de Joanaz de Melo nem “os amanhãs que cantam nem a desgraça absoluta”.

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